Não é difícil encontrar, principalmente dentro dos cursos de pedagogia e licenciatura, quem se escandalize com a afirmação de que devêssemos considerar um ensino de matemática mais abstrato ou genérico. Como assim ensinar matemática pura, numa época em que a maioria dos testes são contextualizados e a educação tem um papel tão importante no desenvolvimento técnico dos jovens? Esse sujeito por acaso não leu nada na faculdade? O ensino deve ser prático, envolvido com a realidade do estudante, fazendo com que ele aprenda o conteúdo a partir de demonstrações materiais. Além disso, vários professores tentam ensinar a matemática ''pura'' e falham nos seus objetivos, então como defender esse ensino? Vamos devagar.
Ideias e pensamentos
Existe uma discussão interessante entre os filósofos sobre a existência de ideias impressas no espírito humano (digamos, coisas que se "nasce sabendo"). John Locke procurou demonstrar nos seus Ensaios Sobre o Entendimento que tais ideias não existem, afinal, se existissem, elas seriam de conhecimento de todos os homens, afirma ele. Wilheim Leibniz, seu contemporâneo, refutou tal afirmação nos seus Novos Ensaios Sobre o Entendimento: só os pensamentos podem ser conhecidos, ao passo que as ideias podem existir em nossa mente sem que as conheçamos, como as memórias.
Deste princípio, Leibniz afirma que até mesmo crianças sabem contar, pois, partindo do princípio da identidade (todo indivíduo é igual a si mesmo e não a outro), uma criança conseguiria identificar a distinção entre um objeto e outro, gerando assim as ideias de singularidade e pluralidade. Wilheim, que também era matemático, não exitou em afirmar que a matemática é uma das ciências mais simples de entender, uma vez que ela trata de conceitualizar ideias que já residem em nossa mente de alguma forma e relacioná-las entre si.
Há quem diga que a Matemática é praticamente um campo de ideias platônico: lá, lida-se com as ideias em seu estado mais ''puro'', pois estão em sua essência (ou, dizendo de outro modo, as ideias estão em suas formas puras). Uma essência é algo que existe em comum de um conjunto de coisas dadas, como a humanidade é a essência do ser humano ou a 'cavalidade' é a essência do ser cavalo, por exemplo. É claro que nem todas as ideias podem ser estudadas segundo a matemática, pois ela não lida com todas as operações de nossa mente.
O geral e as particularidades
Façamos um pequeno exercício, tente imaginar 'três'. Conseguiu? Não, não é para imaginar o número 3, nem 'três alguma coisa', nem a palavra 'três'. Não é fácil, não é? Isso acontece porque três não é uma coisa em si, mas um ente que se manifesta individualmente em todas as triplicidades existentes, como três lápis, as três dimensões do espaço, etc. Há dentro da pedagogia quem diga que 'três', isoladamente, não significa nada; só o 'três alguma coisa' pode significar algo. Pelo contrário, o 'três' já inclui em si todos os 'três alguma coisa' possíveis assim como a palavra coelho já abrange todos os coelhos possíveis, ou a palavra cavalo já abarca todos os cavalos. Enfim, os entes da matemática são representações gerais de todos os fenômenos em que eles podem se manifestar. Em outras palavras, '3' é o signo matemático da triplicidade, a essência de tudo que é triplo.
Assistindo um vídeo sobre socioconstrutivismo há um tempo, o apresentador argumentou da seguinte forma contra o ensino de matemática utilizando somente números: "Ora, nem sempre 2 mais 2 são iguais a 4. Por exemplo: 2 abacaxis mais 2 maçãs são 4 o que?". Por um instante eu concordei com o argumento, mas logo me veio à mente: ''2 maçãs com 2 abacaxis são 4 frutas. 3 uvas com 4 cadeiras são 7 coisas. 1 Joãozinho com 2 Marias são 3 pessoas." Não é porque abacaxis e maçãs não são a mesma coisa que seu número não pode ser contado quando estão em conjunto.
Hoje em dia, geralmente os alunos não são ensinados a conceitualizar suas ideias, mas somente a matéria: eles aprendem a identificar o número 5 quando lhes são mostradas 5 canetas, mas não a tratar o 5 como quintuplicidade, a essência de tudo que é quíntuplo, ficando, assim, completamente confusos quando um professor lhes apresenta uma fórmula ou faz uma demonstração matemática, sem lhes dar exemplos materiais daquilo que ele está dizendo. Eles não estão acostumados a tratar os conceitos como ideias, mas somente a extraí-los de fenômenos particulares, o que é útil no ensino de matemática, é claro, mas se torna uma enorme pedra no caminho quando se vai ensinar conceitos matemáticos que não são tão facilmente abstraídos de fenômenos materiais, como logaritmos ou alguns conceitos de permutação e geometria. Pode-se ensinar matemática dentro do próprio campo matemático, quando seus conceitos iniciais são aprendidos. É possível ensinar uma criança a tabuada do 2 assim que ela aprende a contar, pedindo que ela conte um número e pule o próximo, começando pelo 0 (zero). Desse modo, a criança não fica presa à lista de multiplicações por 2 de 2*1 a 2*10; existem várias escolas e professores que usam esse método com sucesso nos anos iniciais.
Não defendo que o estilo de ensino corrente seja substituído pelo ensino de matemática pura como nos cursos de bacharelado, com demonstrações, teoremas e tudo mais, mas não defendo também que tenhamos uma educação experiencialista, materialista, que parte do princípio de que o que importa é aquilo que é útil e o que deve ser ensinado é somente aquilo que pode ser experienciado. Matemática é mais que suas aplicações práticas, assim como a história é mais que os fatos narrados: é exercício da inteligência, conhecimento dos mecanismos do universo, entre outras tantas coisas. Aprender matemática para passar no ENEM é bom, mas aprender matemática e passar no ENEM é ainda melhor.
E você? Qual a sua reflexão sobre esse tema? Deixe sua opinião logo aqui embaixo nos comentários!
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